sábado, 4 de abril de 2009

O Iceberg


Rosely Lira

Eu sou química. Da área de Psiquiatria e Psicanálise só tenho a minha curiosidade característica por alguns assuntos e uma grande admiração pela obra de Jung, principalmente por conta do estudo sobre Paracelso e sobre a Alquimia. Não tenho nenhuma formação técnica que me permita fazer colocações nessa área, como faria um especialista. No entanto, tenho um senso crítico muito apurado acerca das minhas próprias falhas, dos acontecimentos atuais e da inversão dos valores humanos que provocam, inclusive, consequências drásticas nas relações como um todo e nas relações de trabalho. Estou envolvida em todo esse processo e, ao contrário de me colocar como vítima, sou uma defensora dos valores esquecidos e/ou substituídos por uma enxurrada de futilidades. Posiciono-me como mulher, profissional, mãe e como uma pessoa que ainda tem esperança por uma modificação drástica no mundo, que nos possibilite voltar a acreditar nas pessoas, mesmo tendo a certeza de que essas mudanças chegarão, mas que apenas serão vividas na sua intensidade pelos meus filhos, netos ou bisnetos.


No mês de fevereiro desse ano fomos bombardeados pelas notícias envolvendo a agressão contra a advogada brasileira Paula Oliveira, de 26 anos, que teria sido espancada por três jovens neonazistas que, além das agressões físicas, teriam deixado marcas gravadas com estiletes em grande parte do seu corpo com siglas que remetiam a um partido alemão de extrema direita (SVP – Partido do povo suíço). Foi uma comoção internacional, envolvendo a polícia, o nosso presidente, ministros e embaixadores. Tudo porque todo mundo que lia a notícia ficava indignado com a violência a uma brasileira no exterior, que não se limitou apenas às agressões físicas, mas que envolvia requinte de crueldade e preconceito. Além disso, a agressão culminou com o aborto espontâneo de gêmeas, destruindo a felicidade de uma jovem que, aparentemente, teria conseguido realizar o sonho de milhares de jovens brasileiros que incluem ter acesso à educação de qualidade, viagens ao exterior, oportunidade de emprego numa grande empresa internacional, boa remuneração, relacionamento com um estrangeiro e ainda por fim, uma gravidez de gêmeas (tão desejada também por celebridades e que lhe conferiria cidadania num país de primeiro mundo). Enfim, parecia que a advogada havia conseguido a senha mágica para a realização de todos os desejos comuns aos simples mortais e “aqueles neonazistas”, numa ação xenofóbica, acabaram com grande parte desses sonhos. Essa foi a primeira versão.


Com o passar dos dias, começamos a ler notícias onde a polícia da Suíça declarava que tinha fortes indícios para acreditar que a jovem advogada teria simulado a agressão, que teria se automutilado e que não teria abortado, pois nunca esteve grávida, muito menos de gêmeas. Quando li essas declarações, julguei imediatamente a polícia de lá, imaginando que era puro preconceito contra um estrangeiro. Em seguida, me veio à memória uma das atividades desenvolvidas no Laboratório do Projeto que funciona no Instituto de Biologia da UFBA que, numa fase das atividades, exatamente no “momento de reflexão”, foi mostrada a tão famosa figura do iceberg. Como é um momento onde os alunos e orientadores expõem os seus sentimentos abertamente, algumas pessoas associaram a figura à conduta humana, quando determinadas pessoas se comportam tal como o iceberg da figura, deixando à mostra apenas parte do que são na realidade, coincidentemente a parte mais bela e mais frágil – a parte que fascina e seduz, deixando encoberta toda a complexidade do seu caráter que envolve desvios de conduta, preconceitos, vícios e, principalmente, o grande perigo que essas pessoas representam como amigas, companheiras, familiares e colegas de trabalho. Juro que isso mexeu comigo durante semanas e meu desconforto aumentava à medida que lia as notícias sobre esse caso, que sinalizavam que tudo não havia passado de uma simulação. A jovem advogada teria construído toda uma parte desse iceberg que estava à mostra (era jovem, advogada – até hoje muitos pais querem um filho médico, advogado ou engenheiro - de família rica, conseguiu uma excelente oportunidade de emprego, morava na Suíça – um dos países mais ricos do mundo - estava grávida de gêmeas e ela e o companheiro estavam felizes da vida com as novas conquistas, justamente o fechamento do pacote que todos sonham e desejam como nos contos de fada que líamos quando crianças). Apenas parte disso era realidade. A outra parte do iceberg escondia um jogo de mentiras envolvendo os colegas de trabalho, relacionamentos que nunca existiram e condutas típicas de uma personalidade conturbada (me perdoem os especialistas se esse não for o termo correto). Além disso, uma habilidade para simular, desde uma gravidez até uma mutilação com estiletes e um aborto. Esse caso não saiu da minha mente durante semanas!


Eu tenho 41 anos e tenho dois filhos (Victor – 16 anos e Rodrigo – 12 anos). Fiquei imaginando que os meus filhos e vocês (adolescentes e jovens) estão construindo os seus icebergs e essa é uma fase muito complexa. Qual seria a contribuição dos pais para vocês criarem modelos complexos que, na verdade, vocês não querem ser? Como pode um ser humano passar uma vida inteira sendo bombardeado de cobranças envolvendo o que a sociedade deseja? Por que nós todos (eu e vocês) temos que ser ricos, bonitos, bem sucedidos, ter o nível máximo de graduação quando, na verdade, muitos querem uma vida simples e voltada para outras áreas que não incluem a Medicina, as Engenharias e a Advocacia? Para muitos o sonho de uma conta bancária milionária e família feliz com um casal de filhos não é o desejo verdadeiro... Por que nós (mais velhos) e vocês que estão começando a vida agora temos que construir e executar esse modelo de voz infantil, essa aparência frágil e passiva quando, na verdade, temos dentro de nós o Dr. Jekyll e o Mr. Hyde (“O médico e o monstro”, de Robert Stevenson) em menor ou maior intensidade, por sermos todos seres humanos passíveis de erros e acertos?


Dentro do meu perfil psicológico e como consequência da minha educação sempre acreditei que toda farsa tem prazo certo para acabar. Todo modelinho colado para parecer belo e atrativo tende a despedaçar cedo ou tarde. Acho que dizer o que sente e pensa não é absolutamente o certo, pois ficamos expostos às pessoas mal intencionadas que acabam descobrindo facilmente os nossos pontos fracos e, muitas vezes, passam em cima de nós como um rolo compressor. No entanto, considero o modelo politicamente correto e o que provoca menos conseqüências para os outros. Para os outros! Não é fácil agir com clareza, dizendo o pensa e sente. Como assim? Ora, se você sabe exatamente como eu sou, das minhas intenções para com você e da minha capacidade e genialidade para o bem e para o mal, cabe a você a decisão de continuar ao meu lado ou se afastar. Você dá ao outro a oportunidade de escolher. Melhor do que isso: você dá ao outro a oportunidade de também mostrar as cartas para você e de deixar de fingir, porque você mostra que está se arriscando ao ser transparente. Você passa a ser para o outro um modelo diferente, que o outro pode adotar ou não. Eu, sabendo exatamente quem sou, tenho condições de assumir os acertos e as consequências dos erros. Não vou bancar a vítima e culpar meus pais e a sociedade pelo que aconteceu comigo. Poucos são realmente vítimas! O contrário acontece com uma “pessoa iceberg” (como o da foto) que se aproxima de nós com a sua voz doce e melosa, quando está mais para o Mr. Hyde (o monstro). Se o meu modelo é falso e eu me comporto se fosse o que na verdade não sou eu posso provocar consequências graves na minha vida e na de muita gente, como essa advogada que provocou uma situação para lá de complicada entre dois países e teve toda a sua “estabilidade” jogada ao chão, pois nunca houve estabilidade e sucesso, e mexeu com os sentimentos das pessoas em várias partes do mundo, levando essas pessoas a julgar quem estava certo como sendo o errado.


Diferente do caso da advogada brasileira e infelizmente um personagem de ficção, pois não me veio à memória um exemplo real, o Jamal Malik, do filme “Quem quer ser um milionário?”, retrata a personalidade simples, humilde e sofrida de um adolescente indiano que, com praticamente nenhum acesso à educação e à cultura, se torna um milionário em um programa famoso de perguntas e respostas. De tão improvável, sua história parece ter sido montada e, mesmo sob tortura, ele não tem nenhuma papel a desempenhar e só tem a sua verdade simples para confessar e confirma como alcançou o prêmio, apoiando-se nos poucos exemplos herdados da sua mãe e fazendo de cada passo da sua trajetória uma oportunidade de crescimento, pois tinha um sonho a realizar e um objetivo a cumprir, sem se corromper nem perder os seus valores individuais. O iceberg dele era invertido. Era um sobrevivente que tinha dado certo, pois era pura fortaleza. O que ele demonstrava era exatamente o que ele era. O que escondia eram as coisas simples e incorruptíveis e que serviam de base para a sua conduta. Quem o enxergava o via na sua totalidade, sem subterfúgios.


Se você é jovem como os meus filhos e se desfruta de um ambiente de liberdade, pesquise sobre as profissões e ouça o que pulsa dentro de você. De que adianta ser um médico para agradar à família e à sociedade e desenvolver uma profissão de maneira irresponsável e sem compromisso? Encher os bolsos de dinheiro enquanto omite socorro para que está do seu lado? Toda profissão tem o mesmo valor! O mundo precisa tanto de médicos e engenheiros quanto de artistas e de professores, assim como precisa de varredores de ruas e garçons. Precisa de multinacionais e de banquinhas de revistas. Nós estamos assistindo a uma situação que, até pouco tempo, seria ficção. Multinacionais ruindo e ricos empresários falindo e tendo que recomeçar do zero. Quem disse que o mercado de trabalho é uma linha reta e que o final da linha graduação – pós-graduação – mestrado – doutorado – PhD você vai encontrar o reconhecimento profissional e o salário mais alto? E as relações? Quem disse que formar – casar e ter filhos garante estabilidade e felicidade? Pense, reflita, julgue você mesmo, de acordo com os seus valores e seus sentimentos! Analise criticamente o que acontece com os outros e à sua volta. Ouça a sua voz interior quando ela grita no seu ouvido: “Ei, acorda! Esse (a) que está aí do seu lado vestido de príncipe (ou fada) esconde uma pessoa cruel e que pode arrasar a sua vida e com os seus planos”. Ouça também o contrário, quando passam uma versão distorcida do outro e dê a essa pessoa uma chance de fazer você mesmo o seu julgamento. Faça você mesmo o julgamento! Seja você o condutor da sua vida. Não se permita ser um brinquedo na mão da mídia, da sociedade ou de quem quer que seja.


Se adiantassem os conselhos eu também diria que se você se identifica com o iceberg da foto, mesmo que ninguém saiba, naqueles minutinhos finais quando você deita e só restam você e os seus pensamentos, procure ajuda de um especialista e reflita se é mesmo um modelo que você que continuar sendo, pois esse modelo não vai se sustentar por toda a vida. Uma hora você vai ser descoberto. Se você é mais simples e corajoso, mãos à obra. Escolha, fale, exponha o que você pensa com serenidade e responsabilidade. Ajude a mudar essa triste realidade na qual vivemos. Eu tenho 41 anos e fiz um pedacinho e continuo acreditando que poderei mudar um pouquinho mais à minha volta, apesar de muitas lágrimas e de vários momentos de tristeza, que aconteceram e que certamente irão acontecer. Mas você, que tem menos de 20 anos, pode mudar muito mais coisas e se machucar e machucar menos você e os outros, pois tem toda uma vida pela frente. Como diriam os Alquimistas: “Ora Lege Lege Relege, labora et invenies”, ou seja: “Medita, lê, lê, relê, trabalha e descobrirás”. Você vai encontrar a maneira correta. Acredite!


Rosely Lira é Bacharel em Química e atualmente coordena os Laboratórios de Saúde e Engenharia do Centro Universitário Jorge Amado – UNIJORGE.

Contato: roselyclira@yahoo.com.br


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