quarta-feira, 2 de junho de 2010

Como os Nossos Pais

Por Rosely Lira
O que você pensa que vai conseguir na medida em que for envelhecendo? Dinheiro, prestígio, estabilidade, segurança, bens, família e filhos? Você acha que encontrará todas as respostas? Talvez você ainda nem tenha parado para pensar nisso, principalmente se você mora em uma metrópole e se nasceu depois dos anos noventa. Provavelmente, você não deve ter tido muitas oportunidades de brincar com brinquedos montáveis, não brincou nos jardins, não sentiu aquele medo de não ter quem respondesse às suas dúvidas (além dos seus pais e professores). Também não deve ter tido a oportunidade não sentir culpa por não saber e não se importar com o que está acontecendo a cada segundo e em cada parte distante do planeta. Você deve ter dificuldade para imaginar e achar a vida possível sem Internet e celular, imagino.

Nas férias de dezembro tive a oportunidade de retornar ao bairro onde morei no bairro da Várzea (em Recife), de onde saí aos nove anos. Apesar de ter voltado a Recife algumas vezes essa foi a primeira vez em que fui lá por iniciativa própria e pude experimentar a situação à minha maneira. Trinta e três anos depois fiquei em frente ao portão da minha casa... Sabe aquelas cenas de Lost onde os personagens viajam involuntariamente no tempo? Foi exatamente daquela forma: fui jogada naquele jardim (que parecia tão imenso aos nove anos) e me vi de Maria-Chiquinha e franja, brincando de boneca ou deitada no muro baixo, olhando para o céu e esperando as macaíbas caírem. Dava até para perceber os meus irmãos por perto, ouvir as suas risadas e vê-los correndo de bicicleta ou tentando subir nas jaqueiras. A felicidade me invadiu completamente, como se tivesse baterias em meu corpo e todas tivessem recebido uma carga máxima. Quando fui jogada de volta ao presente meus olhos estavam cheios d’água e uma sensação de frustração também me invadiu. Aquela não era mais “a minha casa” e eu nem podia abrir o portão ou ficar muito tempo lá em frente. A sensação da passagem do tempo foi a mais forte que já experimentei até hoje e fiquei meio perdida durante algum tempo, enquanto dirigia pelo bairro e mostrava a escola, a igreja, a praça, a padaria, numa forma de tentar percorrer os caminhos que fazia diariamente, querendo voluntariamente me jogar no passado novamente. Não deu certo! A partir dali só restaram as lembranças e eu já sabia exatamente que estava em dezembro de 2009. Era um misto de felicidade e sofrimento.

Independente da diferença de idade temos quase as mesmas ausências de preocupações enquanto somos crianças e estamos sob a completa proteção dos nossos pais e, até a adolescência, as nossas similaridades são muitas, principalmente no que se refere à absoluta certeza de que não repetiremos os mesmos modelos dos nossos pais. Tudo o que eles nos falam e nos alertam (na tentativa de nos preservar) parece desnecessário. Um engano que todos nós repetimos, geração após geração, principalmente as mulheres.

Sabe o que nos aproxima (eu e você, eu e meus pais, nossos pais e nossos avós)? Somos absolutamente dependentes das nossas memórias de infância e adolescência e são exatamente as frases e as experiências que ouvimos dos nossos pais (apesar de fingirmos que não estamos “nem aí”) que formam a nossa base para caminharmos ao longo dos anos. Isso tudo é o que nos norteia e nos possibilita as escolhas de uma maneira mais segura. Também creio que isso ajuda a formar o nosso caráter.

Sabe o que nos afasta a todos e nos torna únicos? A forma como aproveitamos esses momentos e como internalizamos essas experiências. Fiquei surpresa na semana passada ao ouvir das minhas irmãs depoimentos completamente diferentes diante dos mesmos fatos que passamos juntas. Como assim? Os irmãos, filhos dos mesmos pais, com idades próximas e com as mesmas oportunidades reagem completamente diferente? O que para mim passou “em brancas nuvens” para a outra era motivo de raiva e para outra ainda gerou um trauma. Voltei pra casa e fiquei pensando “com os meus botões” que meus dois filhos também devem passar pelas mesmas situações e eu tenho que apurar o meu senso crítico e fortalecer aquele que demonstra mais fragilidade e dizer para aquele que já demonstra mais atitude que siga em frente. Tenho que segurar nas mãos dos dois, mas com intensidades diferentes. Um deverá largar a minha mão mais cedo, enquanto o outro precisará segurar a minha mão por mais tempo. Isso também me faz hoje entender melhor a minha mãe diante dos quatro filhos. As mães devem receber um chip divino para perceber as diferenças entre cada um dos filhos e oferecer doses diferentes de atenção e carinho, enquanto os filhos se enxergam como únicos e querem exclusividade. Para quem ainda não é mãe dá a impressão de favorecimento puro e simples.

A experiência de retornar à “minha casa” 33 anos depois também me fez consolidar uma posição diante da imortalidade, conceito para o qual eu não preciso mais de prova ou de explicação. Lembro que fiz o seguinte comentário: “Foi como morrer”. Como eu estava completamente introspectiva, pensei que a sensação de quem morre e volta a ter contato com os entes queridos ou presencia as pessoas mais próximas que reencarnam antes dele deve passar pelas mesmas dores e surpresas, só que de uma forma muito mais intensa. Se não houver consciência de imortalidade vai ficar tentando entrar numa casa que não lhe pertence mais ou enxergar aquela alma encarnada com vingança por ter seguido a sua vida, tido outros amores e filhos. Vai ficar procurando os seus tesouros e tentando expulsar os novos moradores como se eles fossem invasores. Foi um pouco doloroso, mas senti alívio em perceber que compreendo algumas situações que se passam comigo com certa facilidade. Não encontro dificuldades em seguir novos caminhos, abandonar escolhas antigas e enfrentar novos desafios. Consegui um dos meus objetivos que tracei quando era adolescente e acho que isso é amadurecer. Quero crer que vou conseguir seguir meu caminho quando encerrar essa minha passagem por aqui. Nesses tempos em que vivemos tantas catástrofes que atingem a pobres e ricos com a mesma intensidade, é de grande importância ter a consciência de que nada nos pertence de fato, a não ser o nosso corpo e valores, e em algum momento poderemos ser “convidados” a recomeçar do zero.

Quarenta e dois anos da minha vida se passaram. Cresci, formei, casei, tive filhos, descasei, casei de novo, adquiri coisas materiais como resultados do meu trabalho e tive inúmeras oportunidades de conhecer a realidade diferente de cada pessoa que mais se aproximou de mim. Eu tenho dificuldade, sim, para aceitar algumas coisas como a falta de escrúpulos e de compromisso (no campo pessoal ou no ambiente de trabalho) e isso é o que mais me faz gastar energia na tentativa de me convencer que elas estão agindo errado, mesmo sabendo que eu já tenho idade suficiente para estar livre disso e seguir a minha vida sem me preocupar com as escolhas e condutas alheias, pois estou repetindo o modelo que recebi dos meus pais. Seria mais inteligente compreender que as outras pessoas devem ter recebido modelos diferentes que, para elas, devem ser tão verdadeiros quanto os meus. Creio que uma hora esse click irá ocorrer e também não me torturarei com essas diferenças.

Neste exato momento, estou agindo como se meu pai e minha mãe estivessem fundidos em mim. Cheguei exausta do trabalho, procurei meus filhos e fiquei feliz em ver que eles estão bem. Estou preocupada com o almoço de amanhã, ao mesmo tempo em que estou ansiosa pela reunião no trabalho. Com as oportunidades melhores que meus pais me proporcionaram e com os novos papéis que tive que assumir, adquiri mais agilidade para resolver problemas e estou à frente dos dois, pois consigo perceber melhor as situações e fazer análises de uma forma mais crítica, já que tive maior acesso ao conhecimento e os tempos atuais nos exigem essa rapidez. Isso me faz imaginar que os meus filhos também avançarão mais do que eu. Em se tratando de sabedoria, no entanto, vou reconhecer que meus pais estão muito à frente de mim. Ou melhor, os mais velhos carregam essa sabedoria estampada no rosto e costumam dar aquele sorrisinho pra gente diante de uma situação que eles já viveram no passado, provavelmente refletindo “eu também pensava assim na sua idade” e ficam absolutamente tranqüilos em não ter mais os ímpetos da juventude querendo ensinar aos outros com a sua própria história e o sorriso só reflete a calma legada pela sabedoria de compreender que tudo tem o seu tempo.

Voltando aos questionamentos iniciais lembro que é muito importante que você saiba o que realmente quer para você e comece a refletir sobre os valores de cada escolha. Hoje eu tenho absolutamente tudo o que quero, pois tudo que me é verdadeiramente importante não está relacionado com valor material. Se for justa e olhar ao redor vou me sentir uma pessoa privilegiada em muitos sentidos. Daqui pra frente eu não sei que rumo a minha vida vai tomar, mas tudo o que eu vivi até hoje e todas as pessoas mais próximas vão ser determinantes para aceitar e me dar forças para superar os novos desafios que certamente virão.
Esse relato tem apenas o objetivo de registrar a experiência que tive, compartilhando com você os conflitos existenciais que podem também ser os conflitos que você tem. Se estivéssemos juntos poderíamos ler e discutir ao som de Belchior, com a música “Como nossos pais”, imortalizada na voz de Elis Regina, em 1976. Caso você ainda não conheça, destaco os trechos que mais possuem significados para mim:

“... Quero lhe contar como eu vivi
e tudo que aconteceu comigo.
Viver é melhor que sonhar...

... Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos,
ainda somos os mesmos e vivemos,
ainda somos os mesmos e vivemos
como nossos pais...

Hoje eu sei
que quem me deu a ideia
de uma nova consciência e juventude
tá em casa
guardado por Deus
contando vil metal...”

Não se surpreenda se esse relato só lhe retornar à memória 33 anos depois. Aos 20 anos eu também ouvia os mais velhos e pensava “O que é mesmo que ele (a) está falando?” ou “Meu Deus, isso que eu estou ouvindo não tem nada a ver com a minha vida e eu não preciso de conselhos!”. Não tem importância! Mudar de opinião, reconhecer, deixar de lado mágoas antigas, rir da nossa inexperiência só nos acorda e tira pesos desnecessários das nossas costas.

Até a próxima oportunidade!

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