segunda-feira, 1 de março de 2010

Papisa Joana: você não pode deixar de ler!

Por Rosely Lira
Ler é, para mim, uma das atividades mais arrebatadoras que existem. Mexe com todos os meus sentidos, além de mexer com os meus valores, crenças, sentimentos e memórias mais antigas. A depender do conteúdo da leitura chego até a mergulhar no cenário, independente do tempo e do espaço e, durante alguns minutos, passo a fazer parte daquela história, me identificando com um ou outro personagem ou participando como um figurante que presencia todos os momentos, sem emitir uma única palavra. Sofro, torço, suo frio e crio expectativas. Necessito da companhia constante de um livro.


Como gosto de compartilhar, não poderia deixar de recomendar a leitura do livro “Papisa Joana”, de Donna Woolfolk Cross, da Geração Editorial, que conta a história de Joana, uma menina de inteligência rara, que enfrenta os preconceitos e as dificuldades de ser mulher em pleno século IX, na Alemanha Medieval, quando a ignorância do povo, a fome, a necessidade de sobreviver diante de poucas perspectivas, o autoritarismo masculino e a prepotência da Igreja Católica descreviam o mais amplo significado do termo “Idade das Trevas”. Desde o seu nascimento, apenas vitorioso graças à ajuda de uma parteira que anos mais tarde foi julgada como bruxa (apenas por conseguir curar preparados caseiros as doenças comuns da época) até a sua descendência (filha de um cônego - medíocre e frio, que apenas repetia os conhecimentos católicos sem nenhuma capacidade de reflexão ou de análise, preconceituoso e autoritário, retrato impecável dos homens daquela época - e de Gudrun, uma bela saxã que viu no seu marido a única esperança de sobrevivência, mesmo pagando o alto preço do silêncio e da humilhação por ter sido criada em outra crença, encontrando apenas nas suas lembranças antigas o bálsamo para curar a amargura da sua vida difícil) faziam de Joana apenas mais um caso comum de uma mulher condenada aos afazeres domésticos, à reprodução, ao medo, à ignorância e ao silêncio.

A história de Joana simboliza o mais perfeito significado da palavra resiliência (do inglês resilience – capacidade de superar, de se recuperar de adversidades), por perceber e escolher os castigos mais cruéis a se acomodar na ignorância e na limitação de continuar vivendo no mesmo lugarejo do seu nascimento. Joana aproveita a ausência temporária dos pais (dedicados diariamente a tarefas tão distintas) para, com a ajuda do irmão mais velho, Mateus, (primogênito e, por isso detentor de todas as regalias para abdicar do trabalho braçal em prol dos estudos), para alfabetizar-se e aprender a ler os textos considerados sagrados e também os proibidos. Diferentemente de Mateus, Joana possui o raro diferencial de contestar e analisar o conteúdo das palavras, raciocinando logicamente sobre o conteúdo dos escritos, sendo considerada uma aberração tanto para as mulheres quanto para os homens, mas um deleite para os verdadeiros mestres.


Alguns trechos do livro me fizeram lembrar o filme “Sociedade dos poetas mortos” (direção de Peter Weir), quando a exigência aos alunos era apenas sobre o processo de repetição, jamais de análise e muito menos de questionamento. As duas histórias mostram jovens que poderiam utilizar o conhecimento como forma de elevação e são impedidos pelos falsos mestres, temerosos de serem superados, modificando e sacudindo a hipocrisia do que foi construído.
Papisa Joana nos faz mergulhar no século IX e nos incita a vontade de aprender mais sobre Carlos Magno e o seu vasto império. É também válido e interessante ler sobre a reforma na educação e os programas de estudo que caracterizavam o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música) e sobre o processo de ensino em poder da Igreja e disponível apenas para muito poucos. Os poucos que tinham acesso ao conhecimento liam, escolhiam e traduziam os textos originais conforme lhes convinham, distorcendo o verdadeiro conteúdo dos seus autores. Ou pior: queimavam e extinguiam qualquer obra que parecesse ameaçadora, retirando por completo preciosidades que poderiam mudar a história das ciências e o destino da humanidade.
Joana é, sem dúvida, um personagem cativante. Uma mulher oculta numa figura masculina, escondida sob o nome de João Ânglico, arrebatada pelo amor proibido pelo único homem que lhe compreendeu e a acompanhou de fato, que chega ao mais alto posto da Igreja Católica, sucedendo o Papa São Leão V (assassinado em 855 d.C.). A sua trajetória durante a vida adulta mostra, ainda, a sua intrigante capacidade de autocontrole e de recursos para manter ocultos os seus segredos nos bastidores da suja escalada pelo trono mais cobiçado da Igreja Católica recheado de manipulações, intrigas, traições e assassinatos.

Falar mais é entregar toda a história tirar o prazer das descobertas e surpresas a cada página. Segundo a autora, os registros do papado de Joana foram estrategicamente destruídos no século XVII e hoje mostram que Bento III sucedeu o Papa São Leão V. Verdade ou lenda eu torço para que uma mulher realmente tenha ocupado um trono tão cobiçado, mostrando que se não há uma “pulga atrás da nossa orelha” qualquer pessoa nos convence realmente de qualquer coisa.

Ficam os meus questionamentos que faço questão de dividir com você:

O conhecimento liberta ou nos coloca num beco sem saída quando sabemos que sozinhos não podemos mudar o mundo? As nossas escolhas e, principalmente, a verbalização das nossas escolhas não nos remetem a um só destino: à solidão? Descobrir a verdade é melhor do que continuar ignorante dos fatos e da capacidade das pessoas para se obter o que se quer?

Século IX(Papisa Joana), século XX (Sociedade dos poetas mortos) e século XXI (nossa triste realidade) e uma única expectativa para os nossos alunos: repetir, não analisar, não questionar e repetir os modelos impostos. O que mudou mesmo em doze séculos?
Se os livros foram traduzidos por homens comuns e mal intencionados e os originais destruídos, onde está mesmo a palavra de Deus, senão dentro de nós mesmos? Por que, então, nos deixamos guiar sem oferecer nenhum tipo de resistência, colocando entre nós e Deus emissários e representantes que escondem sob os seus glamorosos paletós, túnicas e sorrisos estrategicamente treinados para nos fazer enxergá-los como símbolos de pureza e de benevolência quando, na verdade, ocultam todos os vícios de qualquer mortal comum. Por que não nos aventuramos em beber de fontes diversas e encontramos, nós mesmos, o que chamam de Deus?

O meu Deus é diferente do seu Deus. Bebemos de fontes diferentes, porque possuímos histórias de vida e procedências distintas. E agora? Quem está mesmo com a verdade? Quem é o mais virtuosos dentre nós? É possível coexistirmos diante de tantas diferenças ou só pode prevalecer uma única verdade?

Boa leitura e até a próxima oportunidade.

Rosely Lira – Bacharel em Química pela UFBA – Coordenadora dos Laboratórios de Saúde e Engenharia da UNIJORGE – Centro Universitário Jorge Amado. Contatos: roselyclira@yahoo.com.br.





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