sábado, 2 de maio de 2009

Recomendação de Leitura


Rosely Lira

Aproveito este espaço para recomendar para vocês a leitura do livro Estudos Alquímicos, de Carl G. Jung, especialmente do capítulo III (Paracelso, um fenômeno espiritual). É um livro fantástico dividido em cinco capítulos e que inicia com o relato de Jung (Carl Gustav Jung, 26/07/1875 – 06/06/1961, Suíça) sobre o seu contato com o livro “O segredo da flor de ouro”, antigo texto chinês, que o fez se aproximar da Alquimia, levando-o a estudos profundos sobre os seus representantes, obras e ilustrações, resultando na formação de uma das maiores coleções sobre Alquimia do Ocidente. Para quem aprecia Paracelso é um deleite e, mesmo para quem não o aprecia, é um resgate histórico e uma oportunidade de conhecer um pouco desse alquimista fantástico, considerado por muitos como um lunático, mas que, sob a ótica de Jung, foi um gênio do Renascimento (definição que mais aprecio). É apenas uma sugestão para compartilhar com vocês a prática de quebrar alguns paradigmas, olhando as personalidades (cientistas) através de diversas fontes, preferencialmente ouvindo as exaltações e as críticas. Isso só é possível através da leitura e do estudo, preferencialmente feito de maneira imparcial. Nem sempre chegaremos à conclusão mais justa e nem sempre seremos imparciais, pois é uma tendência comum considerar como certo aquilo que está mais próximo dos nossos valores e crenças. No entanto, teremos a oportunidade de emitir a nossa própria opinião sem aquela conduta confortável de continuar repetindo (sem analisar) o que os outros passaram para nós.

A minha paixão e interesse pela Alquimia surgiu ainda durante a graduação em Química na UFBA, quando cursava a disciplina “Evolução da Química”, ministrada pelo Prof. Pedro Sarno. Ao dividir os trabalhos, cada integrante da turma ficou com um período da história para desbravar e expor em forma de Seminário as contribuições e acontecimentos mais marcantes de cada período. O Prof. Pedro Sarno se colocava como um religioso convicto e eu sempre me senti incomodada quando ouvia falar da Idade Média como sendo a Idade das Trevas, por isso peguei esse período da história para desenvolver o meu Seminário. Tanto tempo depois essa é uma inquietação que ainda me desperta o imediato instinto de defesa em prol daqueles que certamente queimaram injustamente nas fogueiras da Inquisição ou que sucumbiram às humilhações, às torturas nos calabouços, que foram calados para sempre ou tiveram que renunciar às suas crenças, aos seus valores e às suas pesquisas. Imediatamente iniciei os trabalhos com o objetivo de colocar toda a culpa da estagnação do período na Igreja Católica, por conta do domínio absoluto, das ameaças e do período cruel da Inquisição. Naquele momento eu só queria me preparar para travar uma disputa com o meu mestre mas, acreditem: foi uma experiência fantástica e rendeu um trabalho muito gratificante e momentos inesquecíveis de discussões bastante enriquecedoras. Foi uma oportunidade de mergulhar mais a fundo na história e me aproximar de detalhes antes despercebidos.

A Alquimia não tem a suas origens esclarecidas, mas está ligada ao Egito, China, Pérsia e Síria muitos séculos antes de Cristo. Dentre todos os alquimistas, eis o meu favorito: Paracelso, que nasceu Philippus Aureolus Teophrastus Bombastus von Hohenheim , no ano de 1493, numa tarde de novembro, na cidade de Einsiedeln, um vilarejo nas montanhas da Suíça alemã.



Paracelso


Monastério Beneditino de Einsiedeln



Para falar sobre Alquimia e, em especial, sobre Paracelso, sobre o seu comportamento pouco usual e sobre a sua obra há que se debruçar sobre os acontecimentos históricos da época, uma vez que tendemos a criticar aquilo que não compreendemos, esquecendo que para gozarmos hoje da liberdade de expressão, de crenças e de valores muita coisa aconteceu para favorecer a quebra de paradigmas e a evolução do pensamento de uma maneira geral. Infelizmente, a grande maioria das pessoas conhece muito pouco da história do nosso país (o que deveria ser obrigatório) e absolutamente desconhece fatos marcantes da história mundial e muito menos sobre a evolução das Ciências. Para se ter uma idéia Jung estudou profundamente sobre Alquimia durante quinze anos para fazer a sua primeira publicação sobre o tema. É impossível desentrelaçar Ciência/Política/Religião e negar a influência de um desses aspectos sobre os outros. Não existe outro caminho, além do estudo, para se obter o conhecimento e devemos aproveitar as tantas fontes disponíveis que existem hoje em dia.

No dia do nascimento de Paracelso corriam as notícias sobre a chegada dos navios espanhóis voltando das Índias através de um novo caminho, trazendo ouro e especiarias, pássaros e “infiéis” nus (índios capturados). Paracelso nasceu um ano antes da descoberta da América (o novo Mundo) por Cristóvão Colombo, em 12/10/1492, a serviço da Espanha (na época do Rei Fernando de Aragão e da Rainha Isabel de Castela). Exatamente esses reis que, em 31/04/1492 assinaram um decreto de expulsão definitiva dos judeus que não se convertessem ao catolicismo, condenando à morte os que permanecessem fiéis a sua crença no país. Era a época do terror causado pela peste negra, do início Renascimento e de todas as mudanças relacionadas com esse período, uma vez que a tomada de Constantinopla em 1453 (hoje Istambul, Turquia) pelos turcos otomanos marca o final da Idade Média. Paracelso viveu durante a época da Reforma de Martinho Lutero (que publicou as 95 teses em 1517) e que foi acompanhada da Contra-Reforma, movimento deflagrado pela Igreja Católica, através da convocação do Concílio de Trento (1543), quando retomou o Tribunal do Santo Ofício (a Inquisição).

Constam nos escritos que, desde muito cedo, Paracelso demonstrou uma curiosidade exacerbada pelas coisas ligadas à Medicina, pelas plantas e pelas ervas silvestres. Sua mãe morreu muito cedo e Paracelso se agarrou à sua religiosidade extrema e aos ensinamentos da mãe Natureza. Além disso, mostrava uma personalidade marcante, inquieta e desafiadora. Teve como mestres o Dr. Hohenheim (pai e médico), Georg Bombast von Hohenheim (avô e grão mestre da Ordem dos Cavaleiros de São João), Trithemius (alquimista e célebre abade do convento de São Jorge, em Wurzburg). No entanto, não se conformou em aprender somente com mestres. Procurava o conhecimento nas pessoas mais simples: as parteiras, as prostitutas, os mineiros, os bruxos, os quiromantes e os alquimistas. Comunicou muito cedo uma proposta de vida desafiadora: o seu trabalho revolucionaria a história, deixando como obsoletas as referências da sua época: Celso (Aulus Cornelius Celsus, 14 a.C. – 37 d.C., médico e enciclopedista romano, que escreveu De Medicina, a primeira obra sobre medicina em Latim a conhecer a forma impressa, em Florença em 1478), Galeno (Claudius Galenus, médico grego, 129 – 199, considerado o Criador da Fisiologia Experimental, médico particular do Imperador Marco Aurélio, publicou mais de 400 livros, sendo 98 deles conhecidos) e Avicena (Abu Ali al-Hussein ibn Abd-Allah ibn Sina, 980 – 1037, célebre filósofo e médico persa, que publicou escreveu Al-Qanun (Cânone, sua obra médica mais importante), Kitab al Shifa, Al-Najat, Al-Hidaya e Al-Isharat wa’l-tanbihat, abordando as áreas da farmacêutica, astronomia, física, matemática, geometria, música e aritmética). Tamanho desafio exigia um nome para ser lembrado por toda a eternidade. Sendo assim, Paracelso (além de Celso) decidiu chamar-se assim para demonstrar sua oposição e a sua superioridade a Celso.

Paracelso estudou nas universidades da Alemanha, França e Itália. Peregrinou pelo mundo (Hungria, Polônia, Espanha, Portugal, Suiça, Tartária – na Ásia Central, onde curou um dos filhos do Kublai Khan – neto de Genghis Khan, Dinamarca, dentre outros). Dentre as suas curas famosas também curou o teólogo e humanista Erasmo de Rotherdan (Desiderius Erasmus Roterodamus, 1466 -1536), que sofria de gota e de problemas nos rins. Erasmo de Rotherdan era amigo do influente editor abastado Johan Frobenius que estava condenado a ter uma perna amputada, após a avaliação de vários médicos importantes da época. Paracelso curou a doença de Frobenius e evitou a amputação da sua perna, gerando uma eterna dívida de gratidão. Por curar pessoas famosas e influentes da mesma forma como curava os mais simples e necessitados, Paracelso transitava entre a fama e a glória, entre a riqueza e a pobreza. Entre a proteção dos poderosos e a perseguição pelos inimigos. Tal como diversas personalidades e pessoas comuns teve uma grande decepção: o seu principal inimigo foi exatamente a sua mais próxima companhia e o seu predileto discípulo Johannes Oporinus (1507 – 1568) que foi um dos responsáveis pela divulgação de características que ajudaram a construir o lado obscuro do seu comportamento, associando a imagem do mestre ao alcoolismo, ao charlatanismo e à boemia. Surpreendentemente, Oporinus foi um dos responsáveis por denegrir a imagem do mestre que lutava e combatia a mentira, o charlatanismo, a distância entre os catedráticos e as pessoas comuns, a justiça. A vingança de Oporinus estava associada à sua incapacidade de superar o seu mestre, uma vez que não conseguia enxergar através dos neologismos e das alegorias alquímicas a mensagem que Paracelso deixava nos seus escritos. Acusava o mestre de ocultar o conhecimento da ciência através desses métodos para não assumir a sua limitação e a sua insignificância. Os neologismos de Paracelso e as alegorias que caracterizaram as mensagens secretas das produções alquímicas serviram exatamente para preservar o conhecimento dos oportunistas, assim como garantia da disseminação do conhecimento apenas entre os iniciados e para confundir os inquisidores durante os julgamentos, o que poupou a vida de muitos alquimistas, inclusive a de Paracelso. Segundo Jung: “O próprio PARACELSO teria ficado surpreso e indignado se alguém o tivesse tomado ao pé da letra.” Apesar de associarmos a Inquisição à Idade Média, contemporâneos de Paracelso foram perseguidos e condenados à morte pela Inquisição, quando não renunciaram às suas pesquisas (Galileo Galilei – 1564/1642, Andreas Vesalius – 1514/1564 e Miguel Servet – 1511/1553, dentre outros).

Paracelso ensinou na universidade da Basiléia (onde Jung também estudou e ensinou), com apenas 34 anos. Mas também ensinou em Colmar, Nurember, Saint-Gall, Pfeffer, Augsburgo e Villach. Recusava-se a ministrar as aulas em latim, como determinava o costume da época, utilizando o alemão.

Jung descreve Paracelso: “Em primeiro lugar, ele é médico, com todas as forças da sua alma e espírito, baseadas numa poderosa crença religiosa. A arte de curar e suas exigências são o critério supremo de PARACELSO. Tudo está a serviço e se inclina diante dessa meta de ajudar e curar. Todas as experiências, todos os conhecimentos e esforços se constelam em torno desse ponto ordenador. Isso acontece apenas quando uma poderosa força emocional impele a modo de uma mola propulsora oculta, ou de uma grande paixão que recobre toda a vida, além da reflexão e da crítica: é a grande compaixão. A misericórdia, diz PARACELSO, é a mestra dos médicos. A misericórdia deve ser inata no médico. A compaixão, que já impeliu e deu asas a tantos grandes homens na realização de sua obra, também é a determinante do destino de PARACELSO.”

Jung fala sobre o espírito visionário de Paracelso: “A autenticidade de nossa experiência da natureza contraposta à autoridade da tradição é o tema fundamental de PARACELSO. Baseado nesse princípio, ele combate as escolas de medicina e seus alunos estendem essa atitude antagônica à filosofia de Aristóteles. Com essa atitude, PARACELSO abriu caminho à investigação nas ciências naturais e favoreceu uma posição autônoma do conhecimento da natureza frente à autoridade da tradição. Este ato libertador teve as consequências mais fecundas, mas também abriu o conflito entre o saber e o crer, que envenenou peculiarmente a atmosfera espiritual do século XIX.”

Jung descreve características da época: “Com ÂNGELO SILÉSIO, PARACELSO tem em comum, por um lado, uma piedade íntima e, por outro, a tocante e perigosa simplicidade de sua relação religiosa com Deus. Ao lado disso e de modo contrário, o espírito ctônico o pressiona de uma forma assustadora: não há uma só forma de mântica e magia que ele não tenha praticado ou aconselhado. Lidar com tais artes – não importando o grau de lucidez que o sujeito acredite ter – não é algo inofensivo do ponto de vista anímico. Na época de PARACELSO o mundo parecia ainda muito estranho: todos tinham uma consciência da proximidade direta das forças obscuras da natureza. O homem daquele tempo ainda não se separara da natureza. Astronomia e astrologia continuavam juntas. Um KEPLER ainda fazia horóscopos. Em lugar da química só havia alquimia. Amuletos, talismãs, consultas a curandeiros para o cuidado e doenças e feridas eram comuns. Uma natureza tão curiosa como a de PARACELSO não podia deixar de familiarizar-se a fundo com todas essas práticas, a fim de descobrir os efeitos estranhos e importantes que delas provinham. Na medida em que eu sei, ele nunca se pronunciou claramente sobre o perigo psíquico da magia para o adepto. Ele até mesmo criticava os médicos por nada entenderem de magia. Ele não menciona porém que eles se mantinham afastados de tudo isso com temor fundamentado.” Na época de Paracelso os médicos acadêmicos evitavam a aproximação com a magia com medo de serem acusados de feitiçaria por seus discípulos. Por conta de não abrir mão dos conhecimentos advindos da magia, Paracelso arrebatou uma quantidade enorme de inimigos formados de autoridades médicas e de médicos acadêmicos.

Paracelso adquiriu uma cultura surpreendente para a sua época por conta das suas perigrinações pelo mundo e se orgulhava por ensinar e escrever em alemão, criando suas palavras (neologismos) a partir do latim, do grego, do italiano, do hebraico e até do árabe. A medicina de Paracelso (medicina Espagírica) estava baseada em quatro pilares: a Filosofia, a Astrologia, a Alquimia e a virtude.

Jung relata a referência da Cabala para Paracelso: “E todos vós, que por vossa religião sois levados a profetizar para as pessoas acontecimentos futuros, passados e presentes, vós que vedes à distância e ledes cartas escondidas e livros selados, procurais na terra e nos muros aquilo que está enterrado, vós que aprendeis grande sabedoria e arte, lembrai-vos, se quiserdes utilizar todas essas coisas, de aceitar a religião da cabala e nela caminhar, pois ela assenta no seguinte fundamento: pedi e recebereis, batei e sereis ouvidos, a porta abrir-se-á e fluirá o que desejardes: e vereis as profundezas da terra, o fundo dos infernos e o terceiro céu; assim alcançareis mais do que a sabedoria de Salomão e tereis maior comunhão com Deus do que tiveram Moisés e Aarão.”

Paracelso foi o precursor e iniciador da medicina química e é considerado o “Pai da homeopatia”. Segundo Jung Paracelso também foi o pioneiro da psicologia empírica e da psicologia médica.

Nessa obra, Jung não cita fatos relacionados à morte de Paracelso, talvez por ser também a sua morte cercada de mistérios. No entanto, diversas fontes citam que Paracelso morreu em Salzburg, no verão de 1541, na Pousada do Cavalo Branco. O seu funeral foi providenciado com todas as honras e seu enterro foi na Igreja de Santo Estevão, onde os moradores colocaram na sua lápide: Aqui jaz Philippus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, famoso doutor em medicina que curou toda classe de feridas, a lepra, a gota, a hidropsia e várias outras enfermidades do corpo com ciência maravilhosa. Morreu em 24 de setembro do ano da graça de 1541.

Espero que com a recomendação dessa leitura muitos se interessem pela Alquimia e por Paracelso, pois essa experiência é surpreendente e desafiadora. Para os mais resistentes e para aqueles que apenas acessam os registros oficiais da ciência e abominam a leitura sobre a Alquimia e sobre outros conhecimentos antigos, encerro citando outro trecho dessa obra de Jung: “De fato, a ciência não é um instrumento perfeito, mas nem por isso deixa de ser um utensílio excelente e inestimável, que só causa dano quando é tomado como um fim em si mesmo. A ciência deve servir: ela erra somente quando pretende usurpar o trono. Deve inclusive servir às ciências adjuntas, pois devido à sua insuficiência e por isso mesmo, necessita do apoio das demais. A ciência é um instrumento do espírito ocidental e com ela se abre mais portas do que com as mãos vazias. É a modalidade da nossa compreensão e só obscurece a vista quando reivindica para si o privilégio de constituir a única maneira adequada de aprender as coisas. O Oriente nos ensina outra forma de compreensão, mais ampla, mais alta e profunda – a compreensão mediante a vida.”


Rosely Lira é Bacharel em Química pela UFBA e atualmente coordena os Laboratórios de Saúde e Engenharia do Centro Universitário Jorge Amado – UNIJORGE.